sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A Viagem Estonteante e Surreal de "The Leftovers"

Tradução do artigo "The Dizzying, Surreal Journey of 'The Leftovers" de Spencer Kornhaber, da revista The Atlantic.


A série de HBO, uma pioneira entre os seus programas surreais recentes, conseguiu equilibrar o comum com o bizarro de forma brilhante.


No segundo episódio da primeira temporada de The Leftovers da HBO, Kevin Garvey, um comandante da polícia suburbano e atormentado, enfrentou uma crise existencial provocada por um bagel. Ele colocou as duas metades na correia de transporte da torradeira da esquadra, mas nenhum bagel, torrado ou por torrar, saiu do outro lado. A câmara observava de dentro da torradeira enquanto Kevin espreitava. O ator Justin Theroux alargou as narinas e arqueou as suas sobrancelhas negras para criar uma expressão de terror. Kevin atirou a máquina contra o balcão de forma violenta e mesmo assim não apareceu nenhum bagel. Para onde raio teria ido?

Os espectadores podiam assumir que Kevin estava a considerar duas respostas igualmente bizarras. Uma era que tinha perdido a cabeça em vez do bagel e que ia juntar-se ao seu pai maluco num hospital psiquiátrico. A outra era que o bagel tinha desaparecido de forma sobrenatural, tal como 140 milhões de pessoas, dois por cento da população mundial, tinham desaparecido inexplicavelmente a 14 de outubro de 2011. De qualquer forma, Kevin estava a reavaliar a sua perceção do mundo e os espectadores estavam a fazer o mesmo enquanto tentavam perceber o que tinham visto no ecrã.

Kevin Garvey procura o bagel

Este tipo de cena era típica nas três temporadas de The Leftovers, que estreou em 2014 e terminou em junho, ainda que estivesse longe de ser a situação mais estranha que a série apresentou. Ao imaginar o rescaldo de um acontecimento como o arrebatamento cristão, mas implementada de forma inescrutável e sem a confirmação da existência de Deus, a série de Damon Lindelof e Tom Perrotta dava muitas vezes a sensação de se tratar de um desafio de comédia negra para ver até onde um drama televisivo bonito e realista podia impor uma estética de desorientação. Sequências de sonhos, coincidências bizarras e imagens perturbadoras incitavam tanta adrenalina como a ação do enredo. Algo essencial para o apreço dos espectadores da séries foi o apetite por reflexão filosófica e elementos Kafkianos. Os críticos, ao que parece, estavam sedentos por esses aspetos e adoraram a série. Porém, as audiências mantiveram-se pequenas, o que parecia indicar que poucos criadores de TV optariam por seguir um caminho tão desconcertante.

E, no entanto, quando The Leftovers acabou, a série destacava-se como uma pioneira numa nova onda de série de televisão arriscadas e voltadas para o metafísico. Westworld e The Young Pope da HBO, Mr. Robot da USA, The OA da Netflix, Legion da FX e alguns dramas de prestígio recentes fintam e desviam-se da coerência e aceitam o desafio proposto desta forma por um engenheiro de Westworld às suas criações de inteligência artificial: "Alguma vez questionou a natureza da sua realidade?" Assistir a estas séries resulta em perguntas constantes sobre se o que estamos a ver é a verdade. Em março, James Poniewozik do The New York Times designou esta colheita como "TV surrealista", descrevendo-a como uma forma de arte nos dias das notícias falsas, de abuso mental e de questionamento da objetividade.

Este subgénero em ascensão não é completamente novo, claro. A lógica dos sonhos e reviravoltas visuais de Twin Peaks (agora de volta à televisão num relançamento da Showtime) e os flashbacks de Lost (o trabalho que tornou Damon Lindelof famoso) precedem-no. Assim como décadas de cinema experimentalista e existencial. Além disso, há questões comerciais básicas que certamente desempenham o seu papel nesta tendência: à medida que as Netflixes do mundo se juntam à HBO na corrida para acumular conteúdo original para os seus subscritores (um estudo indica que foram produzidas mais de 450 séries o ano passado) criar um burburinho a partir de queixos caídos pode ser algo quase tão valioso como manter grandes audiências.

Cena de Twin Peaks

Contudo, as bases filosóficas destas séries são bastante semelhantes. Numa variedade de formas invulgarmente específicas, cada uma delas explora como o nosso mundo pode ser refeito (ou destruído) pela mente. A narrativa ao estilo de boneca russa de Westworld, por exemplo, parece acontecer num futuro onde os robots começam a aperceber-se da sua consciência. O anjo autoproclamado de The OA pode estar, ou não, a voltar atrás na sua história sobre dimensões alternativas. E o jovem Papa de The Young Pope viaja pelas suas memórias e sonhos no caminho para abraçar a sua fé. Em cada um destes casos, o impulso humano de questionar a existência de realidades para além desta cria a bizarria formal. O criador de The Young Pope, Paolo Sorrentino, declarou um termo tão adequado como "Televisão surrealista": "thriller da alma".

Entre esta geração psicadélica de séries, The Leftovers conseguiu a relação mais convincente entre o real e o imaginário, o banal e o bizarro. Recorrendo a um grupo apelativo de personagens de uma cidade pequena cujas vidas são subitamente abaladas, a série misturou um livro de memórias com comédia salvagem e especulações sobre como uma civilização desconfortável com o mistério poderá lidar com algo verdadeiramente incompreensível. O resultado pareceu um buffet de surpresas, e não só porque os criadores estavam a tentar manter os espectadores desorientados: as próprias personagens encontravam-se desorientadas. Ao evitar o sobrenatural pleno (para além da catástrofe de outubro em si), ao mesmo tempo que manteve um sentido profundo do estranho, The Leftovers foi mais do que um exemplo fascinante da televisão surreal contemporânea. A série acabou por se tornar numa obra genuína e profunda de surrealismo moderno. Afinal, para cada um de nós nesta vida, há certos dias em que o simples ato de fazer o pequeno-almoço pode parecer um teste de sanidade.

No primeiro "Manifesto do Surrealismo", publicado em 1924, André Breton escreveu que "sob o pretexto da civilização e do progresso, fomos capazes de expulsar da mente tudo o que poderia ser considerado, bem ou mal, superstição ou fantasia". Influenciado pelos dadaístas, que reagiram aos horrores da Primeira Guerra Mundial com uma anarquia artística, e pela insistência de Sigmund Freud sobre a importância do subconsciente, o surrealismo de Breton procurou mais do que a desconstrução do nosso mundo como o conhecemos. Na agenda encontrava-se um reencantamento do mundo. Ao prestar uma verdadeira atenção aos sonhos, aos pensamentos automáticos e às justaposições estranhas da vida moderna, os surrealistas construíram uma crítica das limitações da racionalidade. O objetivo não era a busca por uma fantasia recheada de ficção científica. O objetivo era ressuscitar a sensibilidade que deu origem à religião. No cerne animado do surrealismo encontrava-se uma "busca pela cultura primitiva", como escreveu Georges Bataille.

André Breton

Os habitantes do mundo de The Leftovers passam realmente por um apagão mental e espiritual que os opõe à "civilização e progresso". A ciência não foi capaz de explicar o desaparecimento instantâneo de milhões de pessoas. Um comité que investigou o "Desaparecimento Súbito" acabou desnorteado. As grandes religiões também não deram respostas claras: o 14 de Outubro levou santos, pecadores e ateus. O padre episcopal Matt Jamison, com a sua congregação em declínio e uma mulher que ficou em estado vegetativo num acidente automóvel ocorrido durante o Desaparecimento, abraçou expressões ridículas de fé. A certa altura, trancou-se numa paliçada em cima de um camião de tacos. Esta não foi a única vez em que The Leftovers inseriu símbolos medievais na vida moderna. Um snack-bar movimentado tornou-se num local improvisado de sacrifícios de bodes; a mortificação da carne regressou na forma de jogos de festa entre adolescentes, de castigos corporais em público e de asfixia (não-erótica) com sacos de plástico.

A força mais surrealista da primeira temporada da série foi o culto niilista dos Remanescentes Culpados. Vestidos de branco, a fumar cigarros incessantemente e sujeitos a um voto de silêncio, os seus membros perturbaram a ordem social frágil e destabilizaram o subconsciente da comunidade. Uma brochura que entregaram numa paragem de autocarro informava que "Tudo o que Interessa sobre Si Encontra-se no Interior"; o interior era branco, claro. "O ato surrealista mais simples consiste em correr para a rua, de pistola na mão e disparar cegamente... contra a multidão", escreveu Breton. Os Remanescentes não chegaram tão longe, mas os seus acólitos simularam friamente terror aleatório ao, por exemplo, atirarem uma granada falsa para um autocarro escolar cheio de crianças. Os alvos reagiram com raiva violenta ou aceitação, tornando-se também eles em provocadores silenciosos ou, no caso de Kevin Garvey, mergulhando na profunda loucura.

Os Remanescentes Culpados

Um pouco de loucura acabou por ser um facto na vida de todas as personagens enquanto enfrentavam uma realidade que sofreu uma avaria. Nora Durst, uma investigadora de fraude pugnaz que perdeu o marido e dois filhos no Desaparecimento, adquiriu o hábito de contratar prostitutas para a alvejar enquanto usava um colete à prova de bala. Porém, aquele que acabou por ser o seu novo namorado, Kevin, um polícia com as emoções à flor da pele que foi praticamente abandonado pela família, apesar de tentar manter uma aparente normalidade depois do Desaparecimento, sucumbiu a uma insanidade mais grave.

A sua saga do bagel teve uma resolução racional: ele acabou por pegar num berbequim e abrir a torradeira, onde encontrou dois círculos queimados na parte de trás da máquina. No entanto, ele enlouqueceu. Uma grande parte de The Leftovers foi passada dentro da sua cabeça enquanto os espectadores lhe faziam companhia nalgumas aventuras bastante estranhas. No penúltimo episódio da série, ele deu por si num bunker subterrâneo onde dois Kevins, um com barba e o outro sem, se enfrentaram.

Ao apresentar esta sua jornada rumo à possível insanidade, The Leftovers teve muito em comum com outras histórias ao estilo de Jekyll and Hyde na televisão, que incluem Mr. Robot e Legion, sendo que ambas apresentaram momentos que mais tarde provaram ser experiência mais ou menos psicóticas. Mas, ao contrário destas séries, The Leftovers quase nunca tentou enganar os espectadores e fazê-los acreditar que o que surgia no ecrã era real quando não o era. Todas as visões de Kevin foram explicitamente ambíguas quanto à sua autenticidade, mesmo que outras personagens, admiradas com o facto de ele ter sobrevivido a experiências mortais, carregaram as ressurreições de significado religioso. (Damon Lindelof realçou que o que não falta no nosso mundo são histórias incríveis de pessoas que desafiam a morte).

Ao equilibrar constantemente o invulgar com aspetos verdadeiramente inacreditáveis, a série acentuou uma dinâmica que se tornou familiar nos nossos tempos. O livro de Tom Perrotta, The Leftovers é, em grande parte, uma alegoria do luto do pós-11 de Setembro e Damon Lindelof visitou a cidade de Newton no Connecticut, após o massacre na escola primária de Sandy Hook, enquanto fazia pesquisa para a primeira e sombria temporada de The Leftovers. A violência incompreensível e a tragédia que se segue, injetam uma dimensão surreal à existência. As teorias da conspiração e as perturbações sociais provocadas pelos desaparecimentos massivos no nosso mundo (e, como Damon Linderof sublinhou, por surpresas eleitorais) sugerem que a estranheza de The Lefovers surge mais em camadas e não como um facto consumado.

Mas como é que, face ao anormal, a sociedade pode evitar a loucura? The Leftovers mudou-se do cenário frio de uma cidade no Estado de Nova Iorque na primeira temporada para o Texas na segunda temporada e depois para a Austrália na terceira temporada. Pelo caminho, o pesadelo do luto do seu conceito original foi temperado com fantasia e grandiosidade à medida que a série avaliava se as pessoas conseguem, nas palavras da música de abertura da segunda temporada, "permitir que haja mistério". O último episódio da série (alerta de spoiler para quem ainda não viu) apresentou o seu teste mais radicalmente desorientador aos espectadores e para as personagens.

O último episódio começou com o único galanteio que a série teve com a ficção científica: Nora a preparar-se para entrar num dispositivo radioativo para morrer ou, segundo as físicas que o inventaram, ser levada para o local onde se encontram os Desaparecidos. Porém, os aspetos verdadeiramente surreais surgiram quando houve um corte e passamos a ver uma Nora mais velha e sozinha numa zona rural da Austrália, onde, para sua surpresa, um Kevin mais velho apareceu de repente, a agir como se eles nunca tivessem partilhado uma vida. Estaria Kevin a ficar maluquinho outra vez? Ou seria isto outra realidade, um universo alternativo?


Quase tudo nesse cenário parecia impossível, até nos ser revelado que quase tudo constituía comportamentos humanos plausíveis. Nora desapareceu no dia em que entrou na máquina e Kevin passou uma década à sua procura, apesar de lhe terem dito que ela tinha desaparecido de vez. Quando ele a encontrou e descobriu que ela tinha se tinha escondido dele durante aqueles anos, ele decidiu agir quase como um estranho e convidá-la para um primeiro encontro. Pouco tempo depois, Kevin confessou a Nora que fingiu a amnésia e o impulso de negar a história (a deles e a do mundo) não pareceu assim tão rebuscado. Quem não gostaria de começar tudo de novo?

Se o desejo de voltar atrás é humano, o desejo de obter todas as respostas também o é, um desejo que Nora satisfez com a história que contou a Kevin. A máquina radioativa levou-a mesmo, segundo ela, ao local onde se encontram os Desaparecidos. Lá, ela viu que os seus filhos e o marido (que tinham uma nova mãe e esposa) eram das poucas famílias felizes numa dimensão alternativa cruel onde 98% da população tinha desaparecido no 14 de Outubro. Então, ela decidiu não interferir. O processo de regressar demorou tanto tempo e a história dela parecia tão improvável, que ela não procurou Kevin quando regressou. Nos últimos momentos da série, ele pegou na mão dela e disse que acreditava na sua história.

Com este final chocante, mas ao mesmo tempo discreto, The Leftovers expôs a atração e os limites da esperança humana por novos começos. Se acreditarmos na história de Nora de que viajou para outra dimensão, ela regressou convencida de que há dor que nunca sara. Mas, e se não acreditarmos? Na verdade, a história final de The Leftovers pode ser interpretada como uma validação da fé, tanto da cega como da ponderada. A fé corrosiva, irracional e dedicada de que Nora voltaria a ver a sua família levou-a a entrar na máquina. Essa foi a mesma fé que levou Kevin a passar anos à sua procura. A história que Nora contou não pode ser confirmada, mas acreditar nela oferece mais consolo do que a alternativa: de que ela não viajou para outra dimensão e que decidiu simplesmente viver a sua vida em isolamento.

Os surrealistas do início do século XX desafiaram a racionalidade, não para escaparmos do mundo onde vivemos, mas para o explorar no seu pleno, mesmo com os seus aspetos mais assustadores. Em muitas das séries surrealistas que têm surgido ultimamente na televisão, o conhecimento acaba por se render ao misticismo e à irracionalidade. Em The OA, adolescentes cínicos do século XXI sacrificam-se num ritual arcaico num momento de crise; o clímax da primeira temporada de Westworld consistiu num repúdio terrorista do trabalho que levou os humanos a fazer de deuses. Ambas as reviravoltas oferecem bastante satisfação a quem procura analisar as ansiedades da nossa era relativas ao confronto entre a fé e a ciência.

The Leftovers contornou confrontos violentos e conversas duras para fechar num tom que pareceu tanto primitivo como pós-moderno. No final, estas personagens afinaram as suas crenças, não de acordo com pretensões ilusórias da existência de uma verdade universal, ou de alguma ordem transcendente, mas com a busca diária por paz e felicidade. Esta conclusão é mais fundada e menos romântica do que a cena final, com Kevin e Norade mãos dadas, sugere. Os espectadores não são enganados para acreditar que a luta por segurança e significado face ao absurdo tenha acabado, ou que alguma vez vá acabar. The Leftovers mostrou o contrário, tal como o nosso próprio mundo.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Neil Gaiman: O Guia de um Zé Ninguém nos Óscares

Alguns escritores estavam zangados por não irem aos Óscares. Uns amigos contaram-me. "Então, tu vais?", perguntaram eles.

Eu tinha escrito um livro chamado Coraline e a Porta Secreta que o realizador Henry Selick tinha transformado numa maravilha em stop-motion. Tinha ajudado o Henry o mais que pude durante todo o processo de transformar algo de um livro num filme. Tinha apoiado o filme, encorajado as pessoas a ir vê-lo, cravado botões num trailer na internet. Tinha escrito um segmento de 15 segundos para os Óscares no qual a Coraline dizia a um jornalista que impacto teria na sua vida ganhar um Óscar. Achei que isso seria o suficiente para me levar aos Óscares. Não foi. Porém, o Henry, na qualidade de realizador, tinha bilhetes e podia decidir a quem entregá-los e entregou-me um deles.



O meu pai tinha falecido no dia 7 de março de 2009. Os Óscares deste ano foram no dia 7 de março. Esperava que fosse um dia como os outros e que isso não me incomodasse nada, o que demonstra que não me conheço a mim próprio muito bem porque, quando chega o dia, sou a personificação da melancolia e não quero ir aos Óscares. Quero ficar em casa, passear na floresta com o meu cão e se pudesse simplesmente carregar num botão e ficar lá sem desiludir ninguém, era o que fazia.

Visto-me. Uma estilista chamada Kambriel, que conheci quando fez um vestido que permitisse que a minha noiva e o Jason Webley representassem gémeos siameses, tinha-se oferecido para me vestir para os Óscares e eu aceitei a oferta. Ela fez-me um blazer e um colete e até acho que eles me ficam bem. E o melhor de tudo é que agora tenho uma resposta para as pessoas que me perguntam: "O que vais usar nos Óscares?" E isso deixa a Kambriel muito feliz.

A Focus Films, que distribuiu Coraline está a tratar bem de mim. Na noite de véspera dos Óscares deram uma pequena festa no Chateau Marmont para os seus dois nomeados: Coraline e Um Homem Sério. Os convidados eram uma mistura estranha de judeus de Minneapolis e de animadores. E ainda mais estranho era o facto de eu ser um dos judeus de Minneapolis (ou quase: acabei por comparar apontamentos com um dos convidados que serviram para um artigo explosivo para o jornal de St. Paul que denunciava que afinal vivo a uma hora de Minneapolis).

A melhor parte dos Óscares, apercebi-me disto quando anunciaram os nomeados, é que Coraline não vai ganhar o prémio de melhor filme de animação. Nada para além de Up- Altamente pode vencer o prémio de melhor filme de animação.

Uma limusine vem buscar-me às 15:00 e vamos para os Óscares. Vamos devagar: as ruas estão fechadas. Os últimos civis que vemos estão numa esquina a segurar em cartazes que dizem que Deus Odeia Gays, que os terramotos recentes são a Forma Espacial de Deus de Odiar Gays e que os Judeus Roubaram alguma coisa, mas não consegui ver bem o quê porque estava outro cartaz a tapar essa parte.

Quando estamos a um bairro de distância do Kodak Theatre, o carro é revistado e depois chegamos lá e atiram-me para a carpete vermelha. Alguém coloca um recibo na minha mão para encontrar o carro mais tarde.

É um caos controlado.

Estou especado ali no meio e apercebo-me de que não faço ideia do que tenho de fazer agora, mas as mulheres parecem borboletas e há pessoas nas bancadas que gritam sempre que uma limusine chega. Alguém chama: "Neil?"

É a Deette da Focus. "Acabei de levar o Henry. Que bela coincidência. Queres que te leve?"

Quero muito. Ela pergunta se quero passar pelas câmaras e eu digo que sim porque a minha noiva está na Austrália e as minhas filhas estão a ver a cerimónia na televisão e a Kambriel vai ficar feliz por ver o blazer dela na televisão.



Caminhamos pela multidão atrás de alguém com um vestido bonito. Parece uma aguarela de um sonho. Não reconheço ninguém, exceto o Steve Carrell porque ele é exatamente igual ao Steve Carrell da televisão, só que é um bocadinho menos cor-de-laranja.

Arrumam-nos como sardinhas enlatadas quando passamos pelos detetores de metal e alguém pisa o vestido de aguarela bonito e a senhora que o está a usar é muito cortês quando isso acontece.

Pergunto à Deette quem está dentro do vestido e ela diz-me que é a Rachel McAdams. Quero cumprimentá-la (a Rachel disse coisas simpáticas sobre mim em algumas entrevistas), mas ela agora está a trabalhar. Eu não. Ninguém quer tirar-me fotografias, nem, descobre a Deette, entrevistar-me. Sou invisível.

Paramos na curva da carpete vermelha. Observo o vestido de aguarela da Rachel McAdams e pergunto-me se consigo ver a marca de um sapato. As câmaras disparam, mas não na minha direção.

E entramos no Kodak Theatre. Uma pessoa apresenta-me ao editor da revista Variety. Apercebo-me de que as minhas competências de reconhecimento facial não funcionam quando as pessoas estão a usar fatos (com a exceção do James Cameron que até hoje nunca vi sem um fato e não reconheceria se estivesse a usar outra coisa). Digo isto ao editor da Variety. Ele aponta para um homem bronzeado e com um grande sorriso, diz-me que é o Mayor de Los Angeles. "Ele vem a estas coisas todas", diz ele. "Porque é que não está atrás da secretária a trabalhar?"

"Er. Porque este é maior dia do ano em Hollywood?" Aventuro-me. "E é domingo?"

"Bem. Sim, Mas ele só aparece quando se abre o armário das bebidas".

Tinha ido aos Globos de Ouro seis semanas antes e descobri que os intervalos nas cerimónias de entrega de prémios são passados numa forma estranha de speed-dating em massa de Hollywood, já que as pessoas andam pela sala a tentar encontrar amigos ou fechar negócios e assumo que esta noite seja igual.

O Kodak Theatre tem um andar térreo e, acima dele, três mezaninos. O meu bilhete é para o primeiro mezanino. Subo, como uma ovelha, as escadas. As pessoas esmagam-se para entrar à medida que uma voz incorpórea nos diz com urgência que os prémios da Academia começam daí a 5 minutos. Olho especado para a mulher à minha frente. Ela tem cabelo louro e uma cara que se parece estranhamente com um peixe, uma cara de plástico assustadora e doce ao mesmo tempo. Ele tem mãos velhas e um marido pequeno e enrugado que parece ser muito mais velho do que ela. Pergunto-me se tinham a mesma idade quando se casaram.

E estamos aqui, sem tempo a perder. As luzes apagam-se e o Neil Patrick Harris canta uma canção especial para os Óscares. Parece que não tem melodia. Várias pessoas no Twitter que não souberam distinguir os dois Neils felicitam-me pelo número.

E agora os nossos anfitriões: Steve Martin e Alec Baldwin. Eles apresentam-se e dizem piadas. A partir do primeiro mezanino, o timing não parece certo, as piadas são constrangedoras, a forma como são ditas é rígida. Mas não parece que estão a atuar para nós. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão e faço essa pergunta no Twitter. Algumas centenas de pessoas dizem-me que é tão mau na televisão como o que estou a ver, 20 dizem-me que estão a gostar. Chego à conclusão de que o Twitter serve para isto: fazer-nos companhia quando estamos completamente sozinhos no mezanino.

O melhor filme de animação é a segunda categoria da noite. Os meus 15 segundos da Coraline a falar para a câmara passam depressa. Aí está, penso eu. A maior audiência que as minhas palavras alguma vez vão ter. Up vence.



Os Óscares continuam. No público não conseguimos ver o que se vê na televisão em casa. Algures abaixo de mim, o George Clooney está a fazer caretas para a câmara, mas eu não sei.

A Tina Fey e o Robert Downey Jr. apresentam o prémio de melhor argumento e têm piada. Pergunto-me se escreveram o segmento deles.

Durante o intervalo, as luzes diminuem e começam a tocar uma música própria para conviver. A Roxanne não tem de ligar a luz vermelha.

Dirijo-me ao bar do primeiro mezanino. Tenho fome e quero matar algum tempo. Bebo whisky. Peço um brownie de chocolate que descubro que é quase tão grande como a minha cabeça e a coisa mais doce que alguma vez coloquei na minha boca. Partilho-o.

As pessoas sobem e descem as escadas sem rumo.

Com o whisky e o açúcar a repararem o meu sistema, desafio as ordens escritas no meu bilhete que dizem para não fotografar nada e envio uma fotografia do menu do bar para o Twitter. A minha noiva está a enviar-me mensagens no Twitter onde me pede para fotografar o interior da casa-de-banho das senhoras, algo que ela fez nos Globos de Ouro, mas mesmo no meu estado carcomido pelo açúcar, aquela parece-me uma ideia potencialmente desastrosa. Ainda assim, penso, devia descer as escadas e cumprimentar o Henry Selick no intervalo seguinte. Desço as escadas. Um jovem simpático de fato pede-me o meu bilhete. Eu mostro-lhe. Ele explica que, na qualidade de residente do primeiro mezanino, não tenho permissão para descer as escadas e potencialmente incomodar os VIP's.

Fico revoltado.

Na verdade, não estou revoltado, mas fico um pouco aborrecido e tenho amigos lá em baixo.

Decido que vou convencer os habitantes dos mezaninos a fazerem uma revolução e a invadirem as escadas como no Titanic. Podem disparar contra alguns de nós, penso eu, mas não nos podem travar a todos. Podemos ser livres: podemos beber no bar lá em baixo, podemos conviver com o Harvey Weinstein.

Alguém me diz no Twitter que ninguém está a vigiar os elevadores. Suspeito que isso pode ser uma armadilha e regresso ao meu lugar.

Perdi o tributo aos filmes de terror.

A Rachel McAdams apresenta um prémio no seu vestido belo e tão na moda.

Nos prémios para o melhor ator e melhor atriz, um conjunto de pessoas que já trabalharam com os nomeados dizem-nos como são todos maravilhosos. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão. No palco à nossa frente, é tão desajeitado que dói.

As pessoas em baixo estão a atropelar-se e a conversar e a bisbilhotar cada vez mais a cada intervalo. Começa a sentir-se uma ponta de pânico na voz incorpórea da anunciadora quando manda toda a gente regressar aos seus lugares.

O homem no bar que se parecia com o Sean Penn era mesmo o Sean Penn. A ovação em pé ao Jeff Bridges chega até ao último mezanino. A ovação em pé à Sandra Bullock só chega às filas da frente do nosso nível e para aí. A ovação em pé à Kathryn Bigelow chega a todo o auditório, exceto, por alguma razão, ao cimo do lado direito do primeiro mezanino, onde eu estou sentado e onde nos mantemos sentados e batemos palmas com cortesia.

Tudo parece estar a ganhar força para atingir o clímax e depois o Tom Hanks entra no palco e diz-nos, sem qualquer cerimónia (sem contar com os meses de campanha para os Óscares) que, ah, já agora, o Estado de Guerra venceu a categoria de melhor filme e boa noite. E acabou.

Subo dois lances de escadas para chegar ao baile do governador e sento-me a falar com o Michael Sheen (que trouxe a sua filha Lily de 11 anos) sobre o jantar de sushi que tivemos dois dias antes e foi interrompido por uma operação policial. Ainda não fazemos ideia porquê. (Na manhã seguinte vai ser uma notícia de primeira página no New York Times. Estavam a servir carne ilegal de baleia).

Vejo o Henry Selick. Ele parece estar aliviado por ter terminado a época de prémios e por poder prosseguir com a vida dele.

Parece-me que andei sonâmbulo e invisível num dos dias mais melancólicos da minha vida. Naquela noite há festas glamourosas, mas não vou a nenhuma e prefiro ficar sentado no lobby de um hotel com bons amigos. Falamos sobre os Óscares.

Na manhã seguinte, na última página do suplemento dos Óscares do Los Angeles Times há uma fotografia panorâmica enorme das pessoas na carpete vermelha. Com uma certa surpresa, encontro-me nela de pé mesmo no meio a olhar especado para o belo vestido de aguarela da Rachel McAdams, à procura de marcas de sapatos.


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Acabado de lançar: "Morrer na Praia"

A minha primeira jornada pela tradução literária acabou de ser lançada. Chama-se "Morrer na Praia" e já está disponível em vários sites.


Max Fried trabalhava como analista forense computacional, mas agora dedica o seu tempo a nadar, a beber e a apanhar banhos de sol na quente Flórida, mas hoje…está para morrer. Um assassino vai cruzar-se no seu caminho.
Quando um advogado de falas mansas convence Max a localizar os ativos de um cliente falecido, Max aceita o trabalho a pensar que vai ser canja. Porém, um velho assassino com uma nova identidade assalta a sua casa e leva o computador do seu cliente.
Max não sabe que o computador contém pistas de um homicídio cometido há 20 anos, mas o ladrão assassino também não sabe que Max guardou uma cópia dos conteúdos do computador roubado no seu iPod. Infelizmente para o mau da fita, a cópia contém provas que lhe poderão valer a pena de morte.
Agora Max é a única pessoa viva que sabe por que razão estão a morrer pessoas. Se ele conseguir ser mais esperto do que o assassino poderá regressar ao seu banco no bar da praia. Se não conseguir, será a quinta vítima.
MORRER NA PRAIA é uma história de mistério e homicídio que inclui um advogado playboy, uma herdeira milionária, o nosso analista preferido e, ah pois, um monte de gente morta, alguns polícias e um homicídio.
Tanto o Max como eu trabalhamos na área da análise forense computacional, somos detetives privados e vivemos numa ilha pequena. Por favor, não lhe diga que apenas um de nós é real.
Max Fried trabalhava como analista forense computacional, mas agora dedica o seu tempo a nadar, a beber e a apanhar banhos de sol na quente Flórida, mas hoje…está para morrer. Um assassino vai cruzar-se no seu caminho.
Quando um advogado de falas mansas convence Max a localizar os ativos de um cliente falecido, Max aceita o trabalho a pensar que vai ser canja. Porém, um velho assassino com uma nova identidade assalta a sua casa e leva o computador do seu cliente.
Max não sabe que o computador contém pistas de um homicídio cometido há 20 anos, mas o ladrão assassino também não sabe que Max guardou uma cópia dos conteúdos do computador roubado no seu iPod. Infelizmente para o mau da fita, a cópia contém provas que lhe poderão valer a pena de morte.
Agora Max é a única pessoa viva que sabe por que razão estão a morrer pessoas. Se ele conseguir ser mais esperto do que o assassino poderá regressar ao seu banco no bar da praia. Se não conseguir, será a quinta vítima.
MORRER NA PRAIA é uma história de mistério e homicídio que inclui um advogado playboy, uma herdeira milionária, o nosso analista preferido e, ah pois, um monte de gente morta, alguns polícias e um homicídio.
Tanto o Max como eu trabalhamos na área da análise forense computacional, somos detetives privados e vivemos numa ilha pequena. Por favor, não lhe diga que apenas um de nós é real.

Disponível em:



sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guimarães procura a vida (e o futuro) - El País

A crise, várias crises em simultâneo, cercam Guimarães, a bela cidade portuguesa com cerca de 50 000 habitantes e uma das cidades mais importantes da região do Vale do Ave. Ao longo dos anos oitenta e noventa, as muitas fábricas têxteis que preenchiam este vale foram fechando devido à pujante competência da China. Desde então elanguescem como velhos dinossauros inúteis. O próprio centro histórico de Guimarães, preciosamente conservado na sombra do velho castelo, está rodeado por várias fábricas vazias com chaminés de tijolo mortas. Porém, os habitantes desta cidade decidiram devolver-lhes a vida, enchendo-as de quadros e de concertos e de peças de teatro para que eles próprios possam sobreviver. A Capital Europeia da Cultura, teve início no último sábado nesta localidade situada a 150 quilómetros de Vigo, com um espetáculo dos La Fura dels Baús que foi contemplado pela cidade inteira que saiu à rua. Através desta iniciativa, prevê-se que muitas das fábricas sejam recuperadas e transformadas em cenários culturais, cenários de filmes ou residências para artistas bolseiros. É o reinventar ou a morte.


A fábrica da Ramada, onde se produziam curtumes e que fechou há bastantes anos, acolherá em setembro um instituto de desenho, mas antes disso servirá como sala de ensaios da orquestra da organização. A ASA, fábrica especializada em colchas e toalhas no seu tempo, situada fora de Guimarães na localidade de Vizela e Santo Tirso, cessou as suas atividades de forma definitiva em 2006. Agora, através de um investidor privado, será transformada numa espécie de centro comercial de lojas baratas. Todavia, antes disso, os seus 24 000 metros quadrados servirão para acolher as principais exposições de pintura.

E a fantasmagórica fábrica têxtil do Conde de Vizela, onde, no século XIX, trabalhavam mais de 4000 empregados e que tinha até a sua própria moeda, Víctor Erice e outros cineastas como Jean-Luc Godard e Aki Kaurismäki (um finlandês que vive perto de Guimarães) vão filmar um filme coletivo. A cidade não está disposta a deixar que o cinema passe por aqui com a desculpa de 2012 e que depois se vá embora, pelo que adquiriu uma equipa de produção cinematográfica com o objetivo de tornar esta cidade um destino para os cineastas: “Já se fala de produções para 2013 que iam para a Europa de Leste. O próprio Erice disse que gostaria de filmar aqui", assegura o responsável pelo setor audiovisual de Guimarães 2012, Rodrigo Areias.



Areias fala disto noutra fábrica antiga de Guimarães reconvertida – graças à iniciativa de um grupo de jovens arquitetos da cidade – no Centro para Assuntos de Arte e Arquitetura. Ainda cheira a novo, há muitos espaços vazios e faz um frio que dói. Porém, cada edifício recebeu a sua missão, alguns servem de residências para artistas estrangeiros convidados para fazerem parte de um laboratório audiovisual especializado em robôs animados e jogos móveis que fariam as delícias de alguém louco por informática aplicada ou de alguém simplesmente louco.

“As pessoas da cidade vêm aqui à noite”, explica Areias com um sorriso. Talvez seja este o segredo: a cidade, a gente desta cidade, que em 2001 foi eleita como Património Cultural da Humanidade, vive a capital da cultura mais como uma oportunidade do que como uma festa. Para muitos, é uma sorte passageira que provavelmente não voltará a acontecer. Quem a organiza tem uma ideia clara: “Não queremos que venha aqui a Filarmónica de Berlim, que aliás é muito cara, toque, faça isso muito bem e que logo depois se vá embora e adeus”, explica um dos porta-vozes da candidatura. “Queremos criar algo que dure, que sirva para mexer com a cidade e com as pessoas daqui", acrescenta. Daí um dos lemas: "Eu faço parte". Há pins com essa frase agarrados às lapelas e aos casacos de quase todos os vizinhos em Guimarães.



O orçamento é pequeno (110 milhões de euros), uma consequência de um ano em que Portugal joga, literalmente, a sua sorte como Estado insolvente, ameaçado pela bancarrota e supervisionado pela troika. Por isso foi necessário trabalhar a imaginação. Um exemplo: a banda inovadora Buraka Som Sistema, um dos exemplos da modernidade portuguesa, virá à cidade e dará um concerto a 28 de janeiro no Pavilhão Multiusos. Nesse dia também está previsto um programa intitulado "Mi casa es tu casa", em que os habitantes da cidade emprestam a sua residência, ou o seu quarto, ou a sua sala a grupos que fazem alí os seus recitais. Já há 40 casas dispostas a abrirem as suas portas.

Portanto, os orgulhosos habitantes de Guimarães estão recetivos. Não é em vão que, segundo os historiadores, tenha nascido aqui Portugal, tal como o seu primeiro rei, Afonso Henriques, que viveu no famoso castelo que, com o tempo, adquiriu o aspeto de uma velha fábrica abandonada. Não é por acaso que o programa oficial arranca no domingo com um documentário sobre música portuguesa intitulado, sintomaticamente, Vamos Tocar Todos Juntos Para Ouvirmos Melhor.






Guimarães se busca la vida (y lo futuro)

La crisis, varias crisis simultáneas, cercan a Guimarães, bella ciudad portuguesa de unos 50.000 habitantes, cabeza de la comarca del Valle del Ave. En los años ochenta y noventa, las inmensas factorías textiles que jalonaban todo este valle se fueron abandonando por la pujante competencia china. Desde entonces languidecen como viejos dinosaurios inútiles. El mismo casco antiguo de Guimarães, preciosamente conservado bajo la sombra del viejo castillo, está rodeado de factorías vacías con chimeneas de ladrillo muertas. Pero los habitantes de esta ciudad han decidido devolverles la vida llenándolas de cuadros y de conciertos y de obras de teatro para, de paso, tratar ellos mismos de sobrevivir. La Capitalidad Europea de la Cultura, estrenada el sábado por esta localidad situada a 150 kilómetros de Vigo mediante un espectáculo de La Fura dels Baus contemplado por la ciudad entera en la calle, prevé la recuperación de muchas de estas fábricas como escenarios culturales, platós de películas o residencias de artistas becados. Reinventarse o morir.

La fábrica de Ramada, una vieja industria de curtidos, cerrada hace muchos años, albergará en septiembre un instituto de diseño, pero antes servirá como sala de ensayos de la orquesta de la organización. La factoría ASA, especializada en su tiempo en colchas y toallas, enclavada fuera de Guimarães, en la localidad de Vizela e Santo Tirso, dejó definitivamente de funcionar en 2006. Ahora, mediante un inversor privado, se transformará en una especie de centro comercial de tiendas baratas. Pero antes, sus 24.000 metros cuadrados servirán para albergar las principales exposiciones de pintura.

Y en la fantasmal fábrica textil del Conde de Vizela, donde en el siglo XIX trabajaban más de 4.000 empleados y que contaba hasta con moneda propia, Víctor Erice y otros cineastas como Jean-Luc Godard o Aki Kaurismäki (el finlandés vive cerca de Guimarães) rodarán una película colectiva. La ciudad no está dispuesta a que el cine pase por aquí con la excusa de 2012 y después se vaya, así que ha adquirido un equipo de producción de películas a fin de convertirse en una ciudad-destino para los cineastas: “Ya tenemos apalabradas producciones para 2013 que iban a irse a Europa del Este. Erice mismo dice que le gustaría venir aquí a rodar”, asegura el responsable del sector audiovisual de Guimarães 2012, Rodrigo Areias.

Areias explica esto en otra vieja fábrica de Guimarães, reconvertida —gracias al impulso de un grupo de jóvenes arquitectos de la ciudad— en el Centro para Asuntos de Arte y Arquitectura. Aún huele a nuevo, hay muchos espacios vacíos, la biblioteca presenta los libros arrumbados y envueltos en plásticos y hace un frío que pela. Pero cada habitación tiene adjudicada una misión, desde residencias para artistas extranjeros invitados a un laboratorio audiovisual especializado en robots animados y juguetitos móviles que haría las delicias de cualquier chiflado de la informática aplicada o de cualquier chiflado a secas.

“Aquí viene la gente de la ciudad por la noche”, explica Areias con una sonrisa. Tal vez este es el secreto: la ciudad, la gente de esta ciudad, que en 2001 fue elegida Patrimonio Cultural de la Humanidad, vive lo de la capitalidad cultural más como una oportunidad que como una fiesta. Para muchos es una suerte de tren que a lo mejor no viene más. Los que lo organizan lo tienen claro: “No queremos que venga la Filarmónica de Berlín, que además es muy cara, toque, lo haga muy bien y luego se vaya y adiós”, explica uno de los portavoces de la candidatura. “Queremos hacer algo que perdure, que sirva para reubicar a la ciudad, y con la gente de aquí”, añade. De ahí uno de los lemas: “Yo formo parte”. Hay chapitas colgadas con la frase de las solapas y de las chaquetas de casi todos los vecinos de Guimarães.
El presupuesto es magro (110 millones de euros), consecuencia de un año en el que Portugal se juega —literalmente— su suerte como Estado solvente, amenazado por la bancarrota y supervisado por la troika. Por eso ha sido necesario echarle imaginación. Un ejemplo: vendrá la innovadora banda Buraka son Sistema, uno de los ejemplos de la modernidad portuguesa, que dará un concierto el 28 de enero en el Pabellón Multiusos. También hay previsto ese día un programa titulado Mi casa es tu casa, en el que los vecinos de la ciudad prestan su piso o su habitación o su pasillo para que otros grupos den allí recitales. Ya hay 40 casas dispuestas a abrir sus puertas.

Los orgullosos vecinos de Guimãraes, pues, responden. No en vano, según los historiadores, Portugal nació aquí, como su primer rey, Alfonso Enríquez, que habitó el famoso castillo que, con el tiempo, ha ido adquiriendo aspecto de vieja fábrica abandonada. No es casual que el programa oficial arrancara el domingo con un documental sobre música portuguesa titulado, sintomáticamente, Vamos a tocar todos juntos para oírnos mejor.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Donna Highfill: A razão pela qual as mulheres deviam usar laranja florescente na carpete vermelha (Huffington Post)


A época dos prémios começou e, muito à semelhança da época da caça, algumas mulheres vão ser abusadas verbalmente este ano enquanto caminham pela carpete vermelha.

Estas mulheres têm um talento incrível, mas mesmo assim pedem-lhes para andar numa carpete vermelha devagar, como se fossem veados bonitos e inocentes a entrar num clube de caça. Assim que estas mulheres realizadas saem das suas limusines, começo a entrar em pânico por elas ao ver os flashes das câmaras que as irão dar o sinal para quais delas serão marcadas com uma etiqueta de “melhor” ou “pior” na manhã seguinte.

Apetece-me dizer-lhes para vestirem alguma coisa laranja flurescente, pode ser que assim as câmaras não as atinjam. Isto porque, o mais provável é que, a não ser que elas sejam tão magras que pareçam um cabide, ou sejam uma das queridinhas da moda (ou seja, a Anne Hathaway ou a Helen Mirren), é muito provável que caiam numa embuscada verbal.

O meu pânico aumenta para todas as mulheres que se apresentam naquela passerelle com uma criação das suas filhas, ou que vistam branco quando têm mais de 38 kg, ou, ainda pior, sem cintas. Sou uma admiradora de auto-confiança e de determinação, mas sinto-me mal pelas barbaridades que vão ler no dia seguinte.



Eu própria, com 52 anos, tenho de admitir que já sonhei várias vezes com receber um prémio. Já imaginei a chamada telefónica de alguém da indústria que me diz: “Donna Highfill, o seu último blog foi tão engraçado que está nomeada para um Emmy na categoria dos blogs”. Eu sei que essa categoria não existe, mas vou sugeri-la à Academia.

Vou preparar o meu discurso, uma pequena proeza que mistura uma história do meu passado para demonstrar a minha humanidade, uma deixa comovente sobre outra pessoa que não ocupe muito tempo, mas que toca o coração e duas piadolas que fazem o George Clooney perder-se de riso e dar-me um olhar que diz: "Quem me dera que não fosses casada...".

Sim, vou ser a rainha da galhofa durante os intervalos, vou encantar o Richard Gere e a Meryl Streep que vão perguntar quando eu passar: "Quem era aquela mulher hilariante?” Vou ignorar a Taylor Swift, só porque ela me irrita, mas vou piscar o olho à Tina Fey e à Amy Poehler porque vamos ficar amigas depressa.

A única coisa que está a faltar no meu sonho muito detalhado é o meu desfile pela passadeira vermelha e eu sei que, se não completar esta visão, ela pode não se tornar realidade. Por isso, imagino os fotógrafos como caçadores em busca da próxima presa. Eu sei que a forma como vou desfilar na passadeira vai parecer algo saído dos Jogos da Fome: uma corrida para um local seguro onde o melhor que posso fazer para sobreviver é misturar-me com o ambiente.



Quando sair da minha limusine alugada, os meus sapatos vão ter tiras largas no tornozelo para cobrir a coleção de veias salientes e inchaço que tem a audácia que ainda se chamar tornozelo. Meias de rede com uma variedade de desenhos de fogos–de-artifício lilases e azuis que vão cobrir as minhas pernas e misturar-se com as varizes nas minhas coxas.

O meu vestido vai ser vermelho, da mesma tonalidade da carpete debaixo dos meus pés. O meu cabelo vai ter um corte de estilo bob, o mais comum de todos. Na minha cara, vou ter tanta maquilhagem refletora de luz que ela vai lutar com os flashes das câmaras e todas as minhas fotos vão ter uma luz brilhante no sítio onde devia estar a minha cara.

Quando os caçadores perguntarem o meu nome à minha publicista alugada, ela vai dizer “Florence Henderson”. Sempre me disseram que sou parecida com ela e parece que ela tem um sentido de humor faboloso, por isso talvez não me processe.

O meu desfile vai ter de ser rápido, visto que a minha mãe sempre me disse que caminho como o Y.A. Title, a velha vedeta de futebol americano. Ele andava muito e eu também. É um bom nome, por isso posso usá-lo quando gritarem "Quem foi o estilista?" Eu vou sorrir, olhar para baixo para o meu vestido e passar muito depressa por eles e atirar-lhes: Y.A. Titlle!

Assim que tiver terminado a passerelle, e depois de ter dado um encontrão ao Hugh Jackman porque não estava prestar atenção à minha direção, vou estar a salvo. Vou estar preparada para sussurrar deixas espertas às estrelas que elas me vão implorar para escrever nos seus próximos guiões.

E, quando for uma escritora famosa, vou escrever para um blog durante os eventos que envolvam uma carpete vermelha e vou ser simpática para todas as mulheres que passam nela. Vou nomear tudo o que achar belo nelas, incluindo a sua confiança e vou aplaudir todas elas por terem a coragem de enfrentar as câmaras.

Até a Taylor Swift.



Why Women Should Wear Blaze Orange To The Red Carpet

Award show season has opened, and much like hunting season there will be some women verbally slaughtered this year as they stroll down the red carpet.

These are women with incredible talent, yet they are asked to walk down the red carpet slowly, like beautiful, innocent deer entering a hunt club. As soon as these accomplished women step out of their limos, I begin to panic for them, watching the camera flashes that will signal the "best" or "worst" label that will tag them the next morning.

I want to tell them to wear blaze orange so maybe the cameras won't shoot them. Because, odds are unless they are so thin they look like an actual wire hanger or are one of the fashion faves (i.e. Anne Hathaway, Helen Mirren), odds are they're going to get verbally ambushed.

My panic elevates for every woman who proceeds down that runway in her daughter's design, or in white if she's more than 85 lbs, or even worse, Spanx-less. I admire their self-confidence and determination, but feel for the barbs they will have to read the next day.

At the age of 52, I have to admit that I've dreamed repeatedly about winning my own award. I have imagined the phone call from an industry insider saying, Donna Highfill, the last blog you posted was so funny you are up for an Emmy in the blogging category. I know that category doesn't exist, but I'm going to suggest it to the Academy.

I will prepare my speech, a little ditty that mixes in a story from my past to show my humanity, a touching line about somebody else that doesn't take too much time but touches the heart, and a couple of zingers that make George Clooney laugh uncontrollably and then give me a look that says, If only you weren't married . . .

Yes, I will be the queen of banter during commercials, charming Richard Gere and Meryl Streep who ask after I pass, Who is that hilarious woman? I will ignore Taylor Swift, just because she annoys me, but wink at Tina Fey and Amy Poehler, because we are soon to be fast friends.

The only thing missing from my very detailed dream is the walk down the red carpet, and I realize that if I don't complete this visualization it may not come true. So, I imagine the cameramen as hunters, looking for their next kill. I realize that my runway walk will be like the Hunger Games -- a dash to safety where the greatest opportunity for survival is to blend in.

As I step out of the rented limo, my shoes will have wide straps at the ankle. covering the collection of bulging veins and slight puffiness that has the audacity to still call itself an ankle. Fishnet stockings with a variety of firework-like designs in purple and blue will cover my legs, blending with the broken veins on my thighs.

My dress will be red, the exact color of the carpet beneath my feet. My hair will be cut in a bob, the most common of all haircuts. On my face I will wear so much light-reflecting make-up that it will fight the camera flash, and every photo of me will show a bright light where my face should be.

When the hunters ask my rented publicist for my name, she will say, Florence Henderson. I've always been told that I look like her, and she seems to have a fabulous sense of humor so, perhaps, she will not sue me.
My walk will have to be quick, since my mother always told me that I have a gait like Y.A. Tittle, the old football star. He lumbered a lot, and so do I. It's a great name, so I might use that when they yell, Who are you wearing? I will smile, look down at my dress as I speed past them, and volley with, Y.A. Tittle!
Once I make it past the runway, perhaps slamming into Hugh Jackman because I wasn't paying careful attention to where I was going, I will be safe. I will be ready to whisper to the stars clever lines that will make them beg me to write their next screen play.

And, once I am a famous writer, I will blog during the red carpet events, and I will be kind to every woman who walks down it. I will point out everything of beauty about them, including their confidence, and I will applaud every single one of them for having the courage to face the camera.

Even Taylor Swift.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Los girasoles ciegos - Alberto Méndez


A Primeira derrota: 1939 ou Se o coração pensasse parava de bater

Agora sabemos que o capitão Alegría escolheu a sua própria morte ás cegas, sem olhar para o rosto furibundo do futuro que aguarda as vidas desenhadas ao contrário. Escolheu morrer devagar sem paixões ou demonstrações exageradas de sentimentos, sem levantar a voz para além do momento em que cruzou o campo de batalha, com as mãos levantadas o suficiente para não parecer que estava a implorar e, perante um inimigo incrédulo, gritar uma e outra vez: "Sou um rendido!".
Sob um ar morno, transparente como um aroma, caía a noite em Madrid num silêncio melancólico quebrado apenas pelo estalido apagado de projécteis que caiam sobre a cidade com uma regularidade litúrgica e não bélica. "Sou um rendido". Durante duas ou três noites, pelo que consta, o capitão Alegría definiu este momento. É provável que tenha recusado dizer "rendo-me" porque essa palavra corresponderia a algo congelado num momento quando a verdade é que ele se tinha rendido aos poucos. Primeiro rendeu-se, depois entregou-se ao inimigo. Quando teve a oportunidade de falar nisso, definiu o seu gesto como uma vitória ao contrário. "Ainda que todas as guerras se paguem com os mortos, há muito tempo que lutámos por ganância. Teremos que escolher entre ganhar uma guerra ou conquistar um cemitério", concluía numa carta que escreveu à sua namorada Inés em Janeiro de 1938. Agora sabemos que ele, sem o saber, já tinha recusado ambas as opções.
Sabendo agora o que sabemos sobre Carlos Alegría, podemos afirmar que durante a transição entre as duas trincheiras escutou apenas o alvoroço do seu pânico. Todos os ruídos, todas as explosões, todos os gritos, foram absorvidos pelo silêncio da noite. Madrid estava lá ao fundo como um cenário, salpicando a tepidez do ar com os perfis de uma cidade apagada que a Lua desenhava com mágoa. Madrid escondia-se.
Começou assim a derrota do capitão Alegría. Durante três longos anos tinha observado esse inimigo civil e esfarrapado, resignado a que outro exército, o seu, reduzisse a nada aquela cidade imóvel, silenciosa que tinha definido as suas fronteiras à sorte, atrás de umas trincheiras a partir das quais já ninguém esperava um ataque há muito tempo.
"A violência e a dor, a raiva e a debilidade, unem-se com o tempo numa religião de sobrevivências, num ritual de esperas onde os que matam e os que morrem, a vítima e o carrasco, cantam os mesmos salmos monótonos; já só se fala a língua da espada e o idioma da ferida", escreveu Alegría ao seu professor de Direito Natural em Salamanca dois meses antes de se render ao inimigo.


Texto Original

Ahora sabemos que el capitán Alegría eligió su propia muerte a ciegas, sin mirar el rostro furibundo del futuro que aguarda a las vidas trazadas al contrario. Eligió entremorir sin pasiones ni aspavientos, sin levantar la voz más allá del momento en que cruzó el campo de batalla, con las manos levantadas lo necesario para no parecer implorante y, ante un enemigo incrédulo, gritar una y otra vez «¡Soy un rendido!».
Bajo un aire tibio, transparente como un aroma, Madrid nocheaba en un silencio melancólico alterado sólo por el estallido apagado de los obuses cayendo sobre la ciudad con una cadencia litúrgica, no bélica. «Soy un rendido.» Durante dos o tres noches, nos consta, el capitán Alegría estuvo definiendo este momento. Es probable que se negara a decir «me rindo» porque esa frase respondería a algo congelado en un instante cuando la verdad es que él se había ido rindiendo poco a poco. Primero se rindió, después se entregó al enemigo. Cuando tuvo oportunidad de hablar de ello, definió su gesto como una victoria al revés. «Aunque todas las guerras se pagan con los muertos, hace tiempo que luchamos por usura. Tendremos que elegir entre ganar una guerra o conquistar un cementerio», concluía en una carta que escribió a su novia Inés en enero de 1938. Ahora sabemos que él, sin saberlo, había rechazado de antemano ambas opciones.
Sabiendo ahora lo que sabemos de Carlos Alegría, podemos afirmar que durante el tránsito entre las dos trincheras sólo escuchó el alboroto de su pánico. Todos los ruidos, todas las explosiones, todos los gritos, fueron absorbidos por el silencio de la noche. Madrid estaba al fondo como un escenario, salpicando la tibieza del aire con los perfiles de una ciudad apagada que la luna dibujaba a su pesar. Madrid se agazapaba.
Así comenzó la derrota del capitán Alegría. Durante tres largos años había observado a ese enemigo desarrapado y paisano, resignado a que otro ejército, el suyo, anonadara esa ciudad inmóvil, silenciosa, que había trazado sus límites al azar, tras unas trincheras desde las que hacía tiempo nadie esperaba un ataque. «La violencia y el dolor, la rabia y la debilidad, se amalgaman con el tiempo en una religión de supervivencias, en un ritual de esperas donde entonan la misma salmodia el que mata y el que muere, la víctima y su verdugo; ya sólo se habla la lengua de la espada o el idioma de la herida», escribió Alegría a su profesor de Derecho Natural en Salamanca dos meses antes de rendirse al enemigo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

An Accidental King Finds His Voice - New York Times

Um Rei Acidental Encontra a Sua Voz


A 3 de Setembro de 1939, depois de o Reino Unido ter declarado Guerra à Alemanha, Jorge VI dirigiu-se a milhões de pessoas do mundo inteiro através da rádio. Foi um apelo sóbrio e vivo ao patriotismo e à força moral, à coragem e à resistência, e foi um dos melhores discursos alguma vez feitos.

Ele teve de se esforçar muito para chegar lá. A aterradora entrada na guerra, em conjunto com o trauma de assumir o trono após a abdicação sem precedentes do seu popular irmão mais velho, Eduardo VIII, tinham feito com que a sua gaguez debilitante, que flagelara o rei desde a infância, regressasse. Os silêncios prolongados na rádio não eram um recurso retórico mas antes uma debilidade verbal.

O facto de ter conseguido fazer tudo isto foi um tributo ao homem que se encontrava a seu lado enquanto falava, um terapeuta da fala australiano sem credenciais e pouco ortodoxo chamado Lionel Logue. “O Discurso do Rei”, que estreia a 24 de Novembro, conta a história da amizade pouco provável entre estes dois homens e descreve como Logue ajudou o rei a encontrar a sua voz e confiança.

“Foi uma tempestade perfeita de catástrofe”, disse Colin Firth, cuja interpretação com nuances do rei Jorge VI gerou um reboliço para os Óscares. “A gaguez causa um grande sofrimento e poucos anos antes ele teria escapado à gravação e edição das suas intervenções. Mas ele era obrigado a falar através de uma invenção nova, a rádio, em directo. E teve de juntar tudo isso a uma ameaça de guerra, onde a única função dele era ter uma voz, falar ao seu povo e ele não consegue falar”.

O filme começa antes de Jorge (na altura chamado Príncipe Alberto ou Bertie) se tornar rei, com uma cena na qual tenta falar a uma multidão expectante no estádio de Wembley. A voz de Colin Firth agita-se. Ele engole as palavras, tropeça nelas e cospe-as aos pedaços, desliza entre silêncios longos e aterradores. É quase fisicamente doloroso vê-lo.

A mulher de Jorge, representada por Helena Bonham Carter, convence-o a procurar a ajuda de Logue (Geoffrey Rush). Os métodos excêntricos de Logue incluem insistir para que ele e Bertie se tratem pelo primeiro nome, fazer Bertie cantar e inquiri-lo de forma impertinente acerca da sua infância solitária e da relação com a sua família fria. O futuro rei vai-se abrindo aos poucos e a sua voz vai relaxando ao mesmo tempo que o seu espírito se reaviva.



“É a forma que Logue encontra de o ajudar numa altura em que as convenções não permitiam a psicanálise a uma pessoa daquelas”, disse Colin Firth. “Logue vem da geração anterior que acreditava que chegar ao cerne do problema psicológico podia ajudar a encontrar a cura”.

O maior medo de Colin Firth foi de fazer Bertie parecer pateta. “Não queria ficar enterrado naquele lugar obscuro, ou gaguejar à taxa máxima no decorrer do filme”, disse ele. Colin e o realizador do filme, Tom Hooper, decidiram que “vai ser desconfortável, temos de sentir a dor dele, mas não até a um ponto em que não a aguentamos”, acrescentou Firth.

As sementes do filme foram plantadas há vários anos, durante a infância do seu guionista David Seidler. O próprio desenvolveu gaguez e mudou-se com a família da Inglaterra para a América durante a guerra. Ele lembra-se de ouvir o rei na rádio do outro lado do oceano.

“Eu ouvia esses discursos e os meus pais diziam-me que ele também gaguejava muito – e vê como ele melhorou” disse Seidler. “Talvez houvesse esperança para mim”.
Alguns anos depois, ele encontrou um dos filhos de Logue, um neurocirurgião reformado que tinha os diários do pai guardados mas que insistiu que qualquer projecto teria que ter a bênção da rainha-mãe, a viúva de Jorge.

Seider escreveu-lhe. “Por favor, não faça isso enquanto for viva”, respondeu ela. “A memória desses acontecimentos ainda é demasiado dolorosa”.

Ela morreu em 2002; o filme está a ser preparado desde aí.

Um rico tesouro de gravações e filmagens de Jorge VI ajudou os cineastas. Uma destas, um discurso que o rei deu na inauguração de uma exposição em Glasgow em 1938, foi tão comovente e o rei parecia tão desesperado e tão triste que levou Colin Firth e Tom Hooper ás lágrimas.

“Isto diz-me muito sobre o que ele lutou e o que sofreu – como deve ter sido para ele”, disse Firth. Mas usou isso como ponto de partida e não como um alvo a atingir.

“Não sou aquela pessoa e não me pareço com ela”, disse ele do rei. “É preciso ultrapassar esse problema e tentar encontrar a verdade de outras formas”.

Tom Hooper disse: “O Colin é um génio porque compreendeu que representar este papel não consistia necessariamente nas palavras ou nos sons que se produzem. Consistia em viver aqueles silêncios aterradores. Quando as pessoas que gaguejam não conseguem dizer a próxima palavra, quando não conseguem falar, o mundo inteiro resume-se a isso. Não existe mais nada para além deles e aquele silêncio”.

Ainda que as conversas  privadas entre Logue, o rei e outros no guião de David Seidler sejam imaginadas, o filme é bastante preciso a nível histórico; até parte do diálogo faz parte da História. O maior desvio da realidade é a compressão dos longos anos de amizade entre o rei e Logue nuns poucos anos chave.

A versão teatral do filme, escrita por David Seidler e encenada por Adrian Noble, tem estreia marcada na Broadway na próxima Primavera.

Colin Firth disse que a deficiência do rei o ajudou, de certa forma, a compreender os problemas dos seus súbditos.

“Ele está a tentar ser solidário com milhões de pessoas que não conhece, sentir o seu sofrimento e não está todo bonito e sentado numa almofada de veludo”, disse ele. “Ele está a experienciar uma luta extraordinária. O facto de ele ter a humildade de não querer a função e a humildade de a cumprir na mesma – havia uma luta corajosa e as pessoas identificavam-se com ela”.

Jorge VI permaneceu amigo de Logue até ao fim das suas vidas. (O rei morreu em 1952, Logue morreu no ano seguinte). O rei pedia a sua ajuda antes de compromissos que envolvessem falar e, em 1937, fê-lo membro da Ordem Real Vitoriana que reconhece serviços pessoais ao regente. O rei nunca ultrapassou a sua gaguez por completo e Tom Hooper disse que seria errado dar um final hollywoodesco típico ao filme, curando-o e dando-lhe um final feliz.

Quando Tom Hooper voltou a ouvir as gravações arquivadas disse: “era claro que o rei ainda estava a lidar com a sua gaguez e que este homem não estava curado. Era um homem que tinha aprendido a viver com aquilo”.
David Seidler disse: “Estou maravilhado com a força de espírito daquele homem. Está registado que Logue disse que o Bertie foi o paciente mais corajoso que ele teve”.